Já fui mais produtiva em questão de resenhas de livro, mas hoje em dia só faço quando me sinto impelida a isso pelo próprio livro. Foi assim com Crime e Castigo e foi assim, agora, com A vida invisível de Eurídice Gusmão.
Por quê invisível? Você se pergunta. Invisível por ser igual a de milhares de outras mulheres na sociedade do Rio de de Janeiro em meados do século XX. Invisível, por ser também tão arcaica quanto atual. Ainda existem por aí milhares de Eurídices, engaioladas em seu próprio papel de dona de casa e cuidadora dos maridos e filhos.
Marta Batalha descreve de forma fluida e muito prazerosa o percurso social da mulheres cariocas daquela época; colégio, namoro, casamento. Saindo de uma prisão e indo para outra.
Eurídice é o modelo perfeito, sempre tímida e acanhada, era ofuscada pela irmã mais velha, Guida, que - de certa forma - agia a frente de seu tempo, por enxergar a vida com olhos de quem quer ir além do senso comum, de quem sabe o que quer. Porém, mesmo sabendo o que queria e tendo movido mundos e fundos para conseguir, Guida também encontrou-se em uma prisão social, ligeiramente diferente da que a irmã encontraria depois que Guida fugisse de casa para viver um grande amor.
Sem a filha mais velha em casa, todos os esforços dos pais de Eurídice foram para que ele seguisse a trajetória almejada para uma "moça de família" e assim foi. Mas Eurídice, como milhares de outras mulheres, tinha dentro de si algo que queria mais que aquilo; mais que cuidar dos filhos, da casa, do marido; Eurídice poderia ser o que quisesse, tinha potencial para o que se aplicasse a fazer. Tentou várias vezes, em campos diferentes, mas ao manifestar suas habilidades logo era silenciada, pois nem marido nem filhos tinham interesse no que ela estava a fazer de forma extraordinária; sentindo-se diminuída, Eurídice se recolhia novamente até encontrar um novo interesse.
Foi nesse recolhimento recorrente que Eurídice acabou perdendo a vontade, dava para ver em seus olhos, não tinha mais aquela vontade de ter algo só seu, de que adiantava?
Não só o marido, mas toda a estrutura social esmagava quaisquer aspirações de mulheres que deveriam ficar quietas em casa, cumprindo seu papel maternal. A sociedade representava "a parte de Eurídice que não queria que Eurídice fosse Eurídice", acho que esse foi o termo mais sensacional que eu já vi no livro.
Poder ser quem quiser é, ainda hoje, um privilégio. Temos mais liberdade social? Sim. Temos mais direitos que antes? Sim. Mas nossas amarras mentais nunca foram tão fortes como atualmente. É isso que vejo na escrita de Martha: uma atualidade arcaica.
Em meio aos dilemas de Eurídice, deparamos com outros elementos muito comuns a qualquer sociedade, não só a carioca. A vizinha fofoqueira e amargurada (também com seus motivos e história de vida), o filho que ficou para cuidar da mãe até morrer e a mãe que não deixa esse filho viver a não ser para ela e somente ela. O marido que não se satisfaz com a esposa modelo de comportamento por que acha que não foi o único a tê-la em seus braços. O amor frágil que sucumbe ao primeiro sinal de dificuldade. A luta das mães solteiras. A vida ainda mais invisível da empregada doméstica da qual os patrões não tem noção do tamanho do sofrimento e que ela abafa pra sobreviver um dia de cada vez.
É um livro que espelha a dificuldade da vida de uma mulher em vários âmbitos e de forma tão clara e leve que é praticamente impossível não se enxergar nem que seja em um único pedacinho dele.
Com certeza, virou uma das minhas escritoras brasileiras favoritas, já quero ler outras de suas obras.