Esse é um aperitivo de Clarice especialmente para vocês.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de
ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma
tortura chinesa.
Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações
de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com
ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses.
Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria:
eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me
traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava
num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando
bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina,
e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas
em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a
andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os
dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo
me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
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Clarice Lispector |
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono
de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de
sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma:
o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal
sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com
ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.
Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer
esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia
sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas
você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que
não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos
espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde
e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a
aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações
a nós duas.
Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco
elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com
enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você
nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia
ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio:
a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé
à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife.
Foi então que, finalmente se
refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora
mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser."
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse"
é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o
livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí
pulando como sempre. Saí andando bem devagar.
Sei que segurava o livro
grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo
levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente,
meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas,
fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes.
Criava as mais falsas dificuldades para aquela
coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia
orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no
colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
amante.
Clarice Lispector
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